Santelmos da Tormenta ou Belas Noites II
Edição revista e atualizada
Por Rilton Primo[i]
O Brasil vive um retrocesso de consciência dos aforismos jurídicos e revolucionários. Cotejemos um texto nosso de há cinco meses originalmente publicado no Portal Aldeia Nagô, isto é, de quando Lula foi conduzido de forma coercitiva, com alguns trechos de um artigo recém-publicado, do jornalista Ricardo Amaral, que guardam sintonias quanto ao previsto e o que tem ocorrido.
Principiamos lembrando que “o aforismo summum jus, summa injuria (máximo do direito, injustiça máxima) já era difundido quando firmou-se legado latino no Livro Primeiro do De Officiis (Dos Deveres, nº 33), de Marco Tulio Cícero, a exatos 2061 anos (45 a.C).” Que “o paradoxo já tinha feito a Antiguidade rir-se com a comédia de Terêncio ‘Heautontimorumenos’ (O Atormentador de Si Mesmo), da qual ouviu-se que ius summum saepe summast malitia (a máxima justiça costuma gerar a maldade máxima)” e que “tal percepção não é sempre desprezada.” Frisamos ser “característico do injusto a astúcia [e que o ‘frisara ali Cícero’] - a interpretação interessada do direito (malitiosa iuris interpretatione)” e que “poderia ele ter acrescido que os efeitos das aplicações excessivamente rígidas da lei só atingem os últimos graus de ruína da justiça se o abuso for seletivo na forma e, in extremis, se é ardiloso na consequência colimada através da lei.” Amaral com a palavra:
Nos últimos dez dias, Globo, Folha e Estadão republicaram antigos vazamentos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula. Notícias velhas foram requentadas e servidas como carne fresca a quem perdeu a memória dos desmentidos: uma sede do Instituto Lula que nunca existiu, uma rodovia na África e o acervo que Lula tem de guardar por força da lei. Isso se chama publicidade opressiva, violência inerente ao estado de exceção e essencial aos “julgamentos pela mídia”. Não pode ser coincidência. A ofensiva dos vazadores e seus repórteres amestrados segue-se à ação da defesa de Lula, que levantou a suspeição de Sérgio Moro para julgá-lo, por perda da imparcialidade. Essa é a notícia nova do caso, que a imprensa brasileira escondeu. Deu no New York Times, mas não saiu no Jornal Nacional. A ação aponta 12 afirmações de Moro antecipando a decisão prévia de condenar Lula. Registra os abusos que ele cometeu – da condução coercitiva sem base legal à divulgação criminosa de grampos telefônicos. No estado de direito, Moro deveria declinar do caso para outro juiz, isento, imparcial, condição que ele perdeu em relação a Lula. O Datafolha também ajuda a entender a ofensiva. Só Lula cresceu. Tem um terço dos votos válidos no primeiro turno e mais de 40% no segundo, contra os três tucanos e a insustentável Marina. Só perde, hoje, para o antipetismo; e debaixo de uma campanha de difamação sem precedentes. É preciso acabar com Lula, fazer sua caveira, antes que ele tenha chance de voltar pelo voto. E antes que sua defesa desmoralize a Lava Jato. Tem de bater na cabeça da jararaca. Mas como, se não há crime para acusá-lo? Se há só pedalinhos, obras de alvenaria, propriedades imaginárias, palestras profissionais, presentes de governos estrangeiros.
Revisamos que “o solo econômico-político não é ético.” Indagamos: “Se o moralismo em qualquer gabinete local de contos de réis seria puerilidade, que esperar das esferas dos bilhões?” Inferimos:
Quem doa apoios, às lutas dos altos escalões decisórios, cobrará com juros. Sim, este dinheiro é capital (dinheiro que exige mais dinheiro), mas não só. Na luta política sua taxa não tem o mesmo sentido razoável que para o fisco. Depois de cada rodada, sistemas de doações legais recomeçam mais ávidos. E, diverso dos capitais que usam quase todas as armas, ele é o próprio Poder. Assim, ou doar é vedado e vale a economia de contratos, ou o ilícito medra e o sistema dos contratos e convênios é assediado por deseconomias ocultas. Em países a rigor, [1º] quem é descoberto é preso, fuzilado etc. ainda que rico. Em outros, [2º] quem descobre certos desvios sofre ameaças ou acidentes letais. Nas republiquetas, [3º] basta impor seletivamente a lei; quem é elite, sai impune. [...]. Aqui, onde e quando mais há moralismo, formam-se coros de sicofantas a serviço da elite [que não cede ponto].”
Recuperamos que Romano historiou “que o termo ‘sicofanta’ foi criado pelos atenienses; era o ‘delator dos que roubavam figos’.” Que rememorou “ainda que, nas comédias de Aristófanes, tanto ‘os delatores quanto os sicofantas são ridicularizados’, terminando por historiar à risca: ‘o emprego de alcaguetes marca os tiranos.’” Que não deveria ser por acaso que estaria “sendo tão citado o mote atribuído a Roberto Bobbio: ‘O fascista fala o tempo todo em corrupção. Fez isso na Itália em 1922, na Alemanha em 1933 e no Brasil em 1964. [...]. Mas o fascista é apenas um criminoso comum, um sociopata que faz carreira na política’. É um involuir.” E previmos Lula ‘seguiria sob o máximo rigor do sistema jurídico-policial, com direito a requintes de recursos legais’, Amaral:
Desde a reeleição de Dilma (aliás, por isso mesmo), Lula, seus filhos, sua empresa de palestras e o Instituto Lula tornaram-se alvos de 9 inquéritos do Ministério Público e da Polícia Federal, 3 proposições de ação de penal, 2 fiscalizações da Receita e 38 mandados de busca. Quebraram e vazaram seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. Numa afronta à Constituição e a princípios universais do Direito, adotados pelo Brasil em tratados internacionais, Lula é investigado pelos mesmos fatos em inquéritos simultâneos: da Procuradoria-Geral da República, de procuradores regionais do Paraná e Brasília e de promotores do Estado de São Paulo. É tiro-ao-alvo. Essa verdadeira devassa – insisto: sem precedentes no Brasil – não encontrou nenhum depósito suspeito, conta no exterior, empresa de fachada ou contrato de gaveta; nenhum centavo sonegado, nenhuma conversa de bandido. Nada que associe Lula direta ou indiretamente aos desvios na Petrobras investigados na Lava Jato ou qualquer ilegalidade. Nem mesmo os réus delatores, que negociam acusações sem provas em troca de liberdade e (muito) dinheiro, apontaram fatos concretos contra Lula. No máximo, ilações, do tipo “ele devia saber”, conduzindo à esfarrapada tese do domínio do fato.
“Os que pedem a prisão de Lula defendem as doações e têm fortunas escusas. Após inúmeras vezes, o cúmulo da imoralidade [dissemos] é revivido como “legalismo”. Os criminosos delatores são tratados como heróis nacionais por juristas (in)constitucionais. Se só estivesse em jogo o Pré-Sal, 2018, era o bastante à seletividade, abusividade dos procedimentos, fim escuso - Terêncio e Cícero”. Prossegue Amaral:
No estado de exceção midiática, apela-se à tese da obstrução da justiça (o maldito direito de defesa), a partir do pré-julgamento de grampos ilegais. O fato é que a Lava Jato e a Procuradoria-Geral da República não têm como entregar – na só-base da prova, da lei e do direito – a mercadoria esperada desde sempre por seus patrocinadores: Lula na cadeia. Não em julgamento justo, com policias e procuradores apartidários, juiz natural e imparcial, tribunais fiscalizadores da primeira instância. [...]. Precisam espalhar que Lula estaria metido “nessa coisa toda”; silenciar e até intimidar quem duvide disso, para sancionar uma condenação sem prova.
Marchamos para as nossas considerações finais nesses termos:
O que está em jogo não nos parece ser nem a legalidade nem as ilegalidades. Os antecessores e candidatos a suceder o PT são a elite culta, armada e rica, historicamente impune, oposta a políticas inclusivas de consumo e produção. Isto não mudaria com a prisão de Lula, o fim da chapa e a destruição do PT. Estas tragédias são possíveis, com provas ou não: teses de ‘domínio do fato’. Tragédias elevadas ao cubo: consolidarão estes procedimentos, ou a revolta. Destas e outras Engels e Marx tinham a convicção de que o estudo da história não seria muito edificante. No entanto, para si era a única ciência, que em si tudo abarca, da natureza à sociedade; mas ela não é linear: avança, retrocede; existem dias que valem anos e vice-versa; seus motores? são as Revoluções. As elites cuidaram antecipadamente para que o Brasil não lembre aforismos. Calam que Niemeyer tenha repetido que ao Brasil “só mesmo a Revolução!”. Até quando o evolucionário será preso, julgado e condenado por criminosos? Não antes que sistemas de doações sejam coibidos nas disputas da República.
Revisemo-nos: Marx postulou que grandes acontecimentos históricos são tragédias e tendem a repetir-se, como farsas, hoje tornado lugar comum. Mas algo diverso ocorre à tragicomédia jurídica, que principia farsa e replica-se até a tragédia; atingida esta, converte-se em acontecimento histórico, que se repete farsa, e pode recomeçar o ciclo de dois modos. Se um dia entenderemos a diferença entre a verdadeira tragédia que será fazer saltar o atual teatro legalista, comparada com tragédia inventada que sua farsa persegue e sentencia, talvez siga cabendo às elites midiáticas decidir. Umas vez ainda e, por fim, Amaral:
Quem foi jornalista na ditadura tem amarga lembrança de colegas que serviam à repressão (alguns em dupla jornada, como na Folha da Tarde, da família Frias). Noticiavam assassinatos de presos como “atropelamentos”, tratavam torturas como “rigorosas investigações”. Faziam a caveira dos “subversivos”. Eram chamados jornalistas de “tiragem” – a serviço dos “tiras”, é claro, não da verdade. Recordo sem intenção de ofender os jornalistas “investigativos” de hoje que comem na mão dos “investigadores” anônimos. Podem acreditar sinceramente que contribuem para “combater a corrupção”. Ganham as manchetes, mas abrem mão do jornalismo, que é a busca da verdade. Quando a meganha pauta e o repórter obedece, cegamente, quem perde é a notícia. E perde a democracia.
E como que diretamente desta matéria, estas palavras encerraram o artigo de março: “À população de boa-fé pela qual nasceu e segue existindo toda República, Castro Alves cantara no Confidência que, quando vires as noites belas, onde voam a poeira das estrelas e das constelações, lembrai do abismo que a teus pés fermenta, e onde, como Santelmos da Tormenta, fulgem Revoluções!...”
[i] Consultor do Centro de Estudios por la Amistad de Latinoamérica, Asia y África – CEALA.